GRANDES MESTRES JAINAS DIGAMBARA
Atualmente os jainistas aderem a uma das duas grandes ramificações da
sua religião - Digambara ou Svetambara. Porém na antiguidade havia apenas uma
tradição jaina e um homem chamado Bhadrabahu tem a distinção de ter sido
o líder dessa comunidade ainda não dividida. Bhadrabahu foi o último
indivíduo a ter atingido Shrut Kevalin (aquele que tem o conhecimento
máximo das Escrituras), a autoridade sobre os textos originais dos 14
Purvas (ensinamentos transmitidos por Mahavira e os outros Tirthankaras)
Os ensinamentos do onisciente Senhor Mahavira e dos outros Tirthankaras
foram agrupados em textos que formaram as 12 Angas e os 14 Purvas - as
Escrituras jainas. Os Purvas foram considerados como parte da décima segunda
Anga, intitulado Drishtivada. Estes textos foram passados de mestre para
discípulo por um sistema bem regulado da tradição oral e mnemônica*. Os mestre os
recitavam e os discípulos os memorizavam. Todos os princípios jainas são
baseados nesses textos.
* mnemônico - é um conjunto de técnicas utilizadas para o processo de
memorização. Consiste na elaboração de suportes como os esquemas, gráficos,
símbolos, palavras ou frases relacionadas com o assunto que se pretende
memorizar. Recorrer a esses suportes promove uma rápida associação e permite uma
melhor assimilação do conteúdo. Está comprovado que a memória humana armazena
informações com mais facilidade quando estas são associadas a sequências
organizadas e simples que vão ajudar a gravar eficazmente os dados. Os
mnemônicos podem ser criados livremente, desde que façam sentido para quem
memoriza. Caso seja uma sequência complicada, o resultado não será eficaz.
Após o Senhor Jambu (século V a.C.) que foi o último ser humano a atingir a
onisciência (kevala jnana)*, monges e estudiosos
jainas foram guiados, apenas, por estes textos. Aqueles que conheciam
todos estes textos são chamados de Shrut Kevalins, indicando que eles tem
a sabedoria dos textos mas não a onisciência (kevala jnana). Conforme
mencionado Acharya Bhadrabahu foi o último Shrut Kevalin. Uma vez que já
houve outros acharyas jainas com o nome de Bhadrabahu, muitas vezes, ele é
referido como Bhadrabahu I.
*kevala jnana - significa onisciência no jainismo e é traduzido como
conhecimento absoluto ou conhecimento supremo. Kevala jnana é uma qualidade intrínseca de todas as almas. Esta qualidade é
encoberta por partículas cármicas que cercam a alma. Cada alma tem o potencial
para obter a onisciência através do desprendimento dessas partículas cármicas.
As Escrituras jainas falam de doze etapas pelas quais a alma atinge este
objetivo. Uma alma que alcançou kevala jnana é chamado de kevalin. De acordo
com o jainismo, somente um kevalin pode compreender os objetos em todos os seus
aspectos e manifestações; os outros só são capazes de conhecimento parcial. Os
pontos de vista das duas seitas do jainismo - Digambara e Svetambara divergem
entre si sobre o assunto kevalin. De acordo com os Digambaras, um kevalin não
sente fome ou sede; já os Svetambaras, acham que um kevalin tem necessidades humanas
normais. De acordo com ambas as tradições o último kevalin foi um discípulo de
um dos onze principais discípulos do útimo Tirthankara, Mahavira; seu
nome foi registrado como Jambu. Acredita-se pois que, depois de Jambu ninguém
mais teve a capacidade de obter kevala jnana.
Bhadrabahu nasceu em Pundravardhan, atual Bangladesh. Durante o seu
tempo, a capital secundária dos Máurias foi a cidade de Ujjain.
Bhadrabahu foi capaz de prever através de percepções extrassensoriais (jnan
nimita = cognição sutil de causas e efeitos) que iria ocorrer uma grande
fome durante 12 anos no norte da Índia. Ele alertou que a fome tornaria a
sobrevivência dos monges muito difícil, já que se tornariam um fardo para
uma sociedade, também necessitada. Sendo assim, ele migrou com um grupo de
monges para o sul da Índia levando com ele Chandragupta, o fundador do Império
Máuria* que, também, se tornara monge.
* Ímpério Máuria ou Mauria - foi um poderoso Estado, geograficamente
extenso da Idade do ferro da Índia governado pela dinastia Máuria (entre 322 a.
C. - 185 a.C.) O Império foi fundado em 322 a. C. por Chandragupta Máuria que
tinha derrubado a dinastia do império Nanda. O Império Máuria foi um dos
maiores impérios do mundo em sua época e o maior da história do subcontinente
indiano.
Enquanto Bhadrabahu estava fora, os monges que permaneceram no Norte perceberam
que as Escrituras sagradas estavam sendo esquecidas. Um monge chamado
Sthulabhadra convocou então um conselho para compilar as Escrituras Purva. No
entanto, por saber que o seu conhecimento dos textos eram imperfeitos, ele
queria Bhadrabahu por perto para ensinar-lhe os pontos que faltavam em sua
memória.
Bhadrabahu ensinou Sthulabhadra, mas o proibiu de escrever nos Purvas sobre
certos assuntos (manifestações de poderes extra físicos) uma vez que
achou que, com o passar do tempo, eles seriam motivo para corrupções. Desse
modo o conhecimento original e que, de todo, não foi integrado nos 14 Purvas
morreu com esses dois homens.
Bhadrabahu, até hoje, continua sendo reverenciado como um exemplo de dedicação
aos princípios do jainismo original. Depois dele a Sangha foi dividida em duas
linhagens. Os monges Digambara pertencem a linhagem do Acharya Vishakha e os
monges Svetambaras seguem a tradição de Sthulabhadra. Bhadrabahu compôs,
também, alguns textos. Na tradição Svetambara as obras Brihatkalpa, Vyavahara e
Nisitha são consideradas suas.
Durante doze anos Bhadrabahu esteve no Nepal para praticar a "Mahaprana
Sadhana" que são exercícios de meditação yoguica. Segundo os
Digambaras, Bhadrabahu morreu após praticar Sallekana (O voto de Sallekana
é observado pelos ascetas jainistas e por alguns devotos leigos no final de
suas vidas, quando então reduzem gradualmente a ingestão de alimentos e
líquidos até morrerem).
Acharya Bhadrabahu tinha um irmão chamado Varahamihira. Esse irmão era um
proeminente astrônomo, matemático e astrólogo. Os dois irmãos moravam no mesmo
reino. Quando nasceu um dos filhos do rei, Varahamihira declarou que ele
viveria cem anos, porém Bhadrabahu o contradisse afirmando que viveria
apenas sete dias e que a criança seria morta por um gato. No oitavo dia,
o principezinho morreu por causa de uma maçaneta de porta que caiu em sua
cabeça - a maçaneta tinha uma imagem de gato esculpida nela. Devido a essa
humilhação Varahamihira deixou o reino e faleceu depois de algum tempo.
Após sua morte Varahamihira tornou-se um Vyantar (segundo os jainas um
tipo de Deva ou semideus - na maioria dos casos voltados para o Mal). Os
jainistas passaram a acreditar que Varahamihira os torturava e
aterrorizava, especialmente, aqueles que eram discípulos e seguidores
de Bhadrabahu. Por causa desse fato Acharya Bhadrabahu, então
elaborou uma oração mântrica para o 23ª Tirthankara - Parshvanath - e invocando,
também, Dharanendra*, o assistente de Parshvanath.
Essa oração é chamada de Upsargahara Stotra, também conhecida como
Uvassagaharam Stotra. Como efeito disso Varahamihira foi derrotado e a
sociedade jaina ficou aliviada. Essa oração mântrica ainda hoje é famosa entre
os jainista e eles a cantam com devido respeito e fé. Na verdade esta oração
fez o nome de Bhadrabahu imortal entre os ascetas jainistas.
* Dharanendra - é o deus assistente (Yaksha = classe de espíritos da
natureza benevolentes) de Parshvanatha, o vigésimo terceiro Tirthankara do
jainismo. Ele goza de uma vida religiosa independente e é muito popular entre
os jainistas. De acordo com a tradição Digambara, quando Parshvanatha era
um príncipe, ele salvou duas serpentes que estavam presas em um tronco que
serviria para um ritual de fogo do yogi Kamath. Mais tarde essas cobras
renasceram como Dharanendra - o rei do submundo naga e Padmavati. Dharanendra e
Padmavati, então, abrigaram Parshvanatha quando ele foi assediado por
Meghalin (Kamath renascido). (Ver mais detalhes abaixo)
Os jainistas acreditam que ao evocarem esses dois semideuses - Dharanendra
e Padmavati - através deste Stotra (ode, elogio, hino de louvor) eles vêm a
Terra para protegê-los ou atendê-los. Em sua forma original essa oração era
muito poderosa. Logo as pessoas começaram a usá-la, excessivamente para coisas
menores ou concretizar desejos materiais insignificantes. Temendo o uso
indevido do mesmo, dois gathas (versos) foram suprimidos deste Stotra. Hoje,
composto apenas de duas estrofes em alguns livros, ele ainda ocupa o lugar de
destaque e é considerado mais poderoso do que qualquer outra oração.
Dharanendra e Padmavati - Um dia, caminhando tranquilamente pela floresta, o
príncipe Parshvanatha viu o famoso yogi Kamath, realizando um ritual de fogo.
Imediatamente descobriu a presença de duas cobras presas nos troncos que
ardiam. No intuito de salvá-las, solicitou a Kamath que interrompesse o ritual
e as retirasse dali. O yogi ficou enfurecido por ter sido interrompido e ignorou
o pedido. Parshvanatha foi, então, até a fogueira e retirou as cobras de lá. Só
que já estavam mortas. O príncipe apiedado delas começou a recitar o Namaskara
Mantra sobre os seus corpos. Com isso fez com que as cobras renascessem no céu
como deuses - o deus Dharanendra e a deusa Padmavati. Os anos se passaram,
Kamath morreu e renasceu como Meghmali, o deus da chuva. Por esse tempo o
príncipe Parshvanatha já havia renunciado ao seu reino para seguir o caminho da
renúncia. Certo dia, ele sentou-se no silêncio da floresta em meditação
profunda. O deus da chuva, Meghmali, de sua morada celestial o observou.
reconheceu-o como sendo o seu antigo antagonista e ficou enfurecido. Decidiu
vingar-se dele e descarregou sobre Parsvanath uma chuva violenta. A águas começaram
a subir em torno do ex-príncipe, no entanto por estar em meditação profunda,
permaneceu alheio ao perigo. As águas turbulentas elevaram-se cada vez mais e
logo ameaçavam afogá-lo. Do céu, Dharanendra e Padmavati - as antigas cobras -
testemunharam a cena e desceram rapidamente para salvar Parshvanatha. A deusa
Padmavati formou uma flor de lótus sob ele e o levantou para que ficasse por
cima das águas e Dharanendra com seu corpo criou uma espécie de toldo
sobre sua cabeça, protegendo-o assim do dilúvio. Abrigado conforme estava
Parshvanatha pode continuar sua meditação e logo alcançou a iluminação. Quando
Meghmali viu que seus esforços foram em vão, tornou-se humilde e procurou
perdão.