segunda-feira, 19 de outubro de 2015

RELIGIÃO JAINA - Escrito por Satish Kumar


RELIGIÃO JAINA

Escrito por Satish Kumar



Satish Kumar

O jainismo é uma das grandes tradições religiosas da Índia, com milhões de adeptos e dezenas de milhares deles espalhados por todo o mundo. A não-violência para com os seres humanos, bem como para com os animais é uma das contribuições fundamentais que a filosofia jaina deu ao mundo. Mahatma Gandhi e Albert Schweitzer - tomando, apenas, dois exemplos - foram fortemente influenciados pela conceito de não-violência jaina; as origens do vegetarianismo, também, são creditadas ao jainismo.

Segundo os biólogos jainas existem 8,4 milhões de espécies vivas na Terra. Incrivelmente, esta longa lista de espécies foi elaborada pelos jainistas há mais de 2.000 anos atrás. Ela inclui águias, cisnes, baleias, tigres, elefantes, cobras, vermes, bactérias, fungos, ar, água, fogo, pedras e tudo o que é natural e vivo. Os jainistas são animistas* - para eles, tudo que é natural (que pertence a natureza) está vivo, e toda vida é sagrada. Qualquer tipo de dano a qualquer forma de vida deve ser evitada ou minimizada. Claro, o sustento de uma forma de vida depende da morte de outra, mas os seguidores do jainismo obedecem a prática de limitar a destruição de vidas, mesmo que para a sua sobrevivência.

*Animismo é a visão de mundo em que as entidadesnão-humanas (animais, plantas, objetos inanimados ou fenômenos) possuem uma essência espiritual. O animismo abrange a crença de que não há separação entre o mundo espiritual e físico (ou material) e de que existem almas ou espíritos, não só em seres humanos, mas também nos animais, plantas, rochas, características geográficas (como montanhas ou rios) ou outras entidades do meio ambiente natural, como o trovão, o vento e as sombras. Exemplos de animismo podem ser encontrados no xintoísmo, no serer, no hinduísmo, no budismo, no jainismo, na cientologia, no  paganismo e no neopaganismo.

Os seres humanos são apenas uma dessas 8,4 milhões de espécies. Eles não têm mais direitos do que qualquer outra criatura. Todos os seres vivos, sejam eles humanos ou não-humanos, têm o mesmo direito à vida. E não só os seres humanos não têm direitos absolutos - de destruir, controlar ou subjugar outras formas de vida - como, também, têm obrigações adicionais de praticar a não-violência e serem humildes em face do fenômeno misterioso, glorioso, abundante e extraordinário do mundo vivo.




Tirthankara Parshvanatha ladeado pelas divindades protetoras, o casal de cobras Padmavati e Dharnendra

Uma história expressa melhor a atitude jaina para com os animais. Uma vez Parshvanatha, um jovem príncipe que estava noivo chegou com sua comitiva de casamento a casa de sua futura consorte. Ao aproximar-se da residência viu um engradado onde havia alguns animais amarrados à espera de serem abatidos. Chocado com os gemidos dos animais o príncipe perguntou: "Porque esses animais estão sendo mantidos nessas condições tão cruéis?" Seus assessores responderam: "Eles serão mortos para serem servidos no banquete suas bodas."

O jovem príncipe encheu-se de compaixão. Ao chegar a casa foi falar com o pai da princesa: "Todos os animais presos para serem abatidos por causa da festa de casamento devem ser libertados, imediatamente".


- "Por que? A vida dos animais existe para o prazer dos seres humanos. Os animais são nossos escravos e nosso alimento. Como pode haver uma festa sem carne?!", argumentou o pai.

O príncipe Parshvanatha ficou indignado. Ele não podia acreditar no que acabara de ouvir. Exclamou: "Os animais têm alma, têm consciência, eles são nossos amigos e parentes, eles são nossos ancestrais. Eles desejam viver tanto quanto nós; eles têm sentimentos e emoções; têm amor e paixão; eles temem a morte tanto quanto nós tememos. Seu instinto de vida não é inferior aquele que nós temos. Seu direito a vida é tão fundamental quanto o nosso. Eu não posso me casar, eu não posso amar, eu não posso ser feliz sabendo que animais são escravizados e mortos." Sem mais delongas ele rejeitou os planos para seu casamento, descartou a vida confortável de um príncipe e respondeu ao chamado interior para sair e despertar as massas adormecidas que tinham sido condicionadas a pensar de forma egoísta e a matar animais para seu prazer e conforto.


De acordo com a história o reino animal recebeu Parshvanatha como salvador dos fracos e da natureza. Ele falava bondosamente e todos se reuniam em torno dele. As aves pousavam nos galhos das árvores próximas; os peixes vinham para o canto do lago onde Parshvanatha estava sentado. Elefantes, leões, raposas, coelhos, ratos, insetos e formigas prestavam homenagem a ele. Um dia encontrando Parshvanatha sendo encharcado pela chuva forte da monção, o rei das serpentes apoiou-se em sua cauda e criou um guarda-chuva com sua enorme cabeça.


Milhares e milhares de pessoas nas aldeias, vilas e cidades eram movidas pelos ensinamentos de  Parshvanatha. Eles renunciavam a carne e assumiam a tarefa de zelar pelo bem-estar animal. A princesa com quem Parshvanatha ia se casar ficou tão inspirada que decidiu permanecer solteira para dedicar-se ao cuidado dos animais. Depois de ter perdido a filha e o futuro genro para a causa da compaixão animal, o  rei ficou angustiado, mas, ainda assim, experimentou uma transformação. Ele anunciou que todos os animais deveriam ser respeitados em seu reino e que não haveria caça, nem armas, nem animais em cativeiro, nem animais de estimação.


Há vinte e quatro grandes libertadores na linhagem jaina. Adinath foi o primeiro. Parshvanatha foi o vigésimo terceiro. Tais libertadores são chamados de Tirthankaras. O vigésimo quarto foi Mahavira que viveu há 2.600 anos. Ele revigorou a religião jaina estabelecendo como seria sua prática até os dias atuais. Todos os vinte e quatro grandes libertadores têm um animal associado a eles, simbolizando que nos ensinamentos jainas também são prioridade. De acordo com os ensinamentos jainas o amor não é amor se ele não inclui amor pelos animais. Que tipo de compaixão é essa que adora e reverencia a vida humana, mas ignora o massacre de animais? Este é o desafio dos jainistas.

Mahavira foi chamado Jina que significa "o conquistador dos inimigos internos" tais como o ego, orgulho, raiva e ilusão. Daí, os seguidores de Jina serem chamados de "jainistas".

Mahavira que nasceu como príncipe, simplesmente, percebeu que há outros valores na vida sem ser a busca interminável de fama, fortuna e poder. Na verdade, fama, fortuna e poder são portadores de "infelicidade". Eles criam medo e restringem a liberdade. Estas noções não se basearam em nenhuma teoria intelectual ou filosófica; foi baseada, sim, em sua própria experiência. Ele deixou o reino para ir para a floresta em busca de sabedoria, liberação e iluminação. Após uma longa vida de meditação e contemplação, Mahavira chegou à conclusão de que existem três elementos essenciais que trazem a verdadeira libertação da alma. Ele os chamou de ahimsa (não-violência), sanyama (simplicidade) e tapas (a prática de austeridades).



Ahimsa (não-violência)

Mahavira disse que a não- violência deve começar na mente. A menos que a mente seja compassiva, não é possível a não-violência. A menos que haja paz no mundo interior, não se pode praticar a não-violência no mundo externo. Se a nossa mente condena outras pessoas, mesmo que a nossa língua pronuncie palavras doces, isso não é não-violência. As sementes da não-violência vivem dentro da consciência interior. Manter a consciência pura é, portanto, parte essencial da doutrina jaina. A consciência pura significa a consciência incorruptível, não contaminada e nem entretida com o desejo de controlar os outros.

Por que somos violentos? Os jainistas responderiam que é porque as pessoas desejam controlar os outros. As pessoas dizem: "Nós somos possuidoras de tudo aqui. Este mundo existe para nosso benefício". Aqueles que comem carne dizem: "Os animais estão aqui para nosso alimento."  "Tudo é para nós e nós somos os senhores da natureza." Esta é a violência da mente, o que leva a violência física.

Mahavira viu o mundo como um lugar sagrado. Os pássaros, as flores, as borboletas e as árvores são sagradas; os rios, o solo e os oceanos são sagrados. A vida como um todo é sagrada. A nossa interação com as outras pessoas e com o mundo natural deve basear-se numa confiança sagrada e numa profunda reverência pela vida de todos. A não-violência da mente deve ser vertida para a maneira como nos comunicamos.

Um discurso prejudicial, duro, falso, desnecessário, desagradável, ofensivo é violência. O uso habilidoso da linguagem é uma virtude sagrada. Mahavira insistiu que temos de compreender, plenamente, os outros antes de falar. A linguagem  pode expressar, apenas, a verdade parcial; portanto, a não-violência é um guia essencial para as palavras que pronunciamos. Neste contexto, Mahavira dá um alto valor ao silêncio. O monge jaina é chamado "muni" que significa "aquele que é silencioso".

A não-violência da mente e do discurso leva à não-violência da ação. Os fins não podem justificar os meios. Os meios devem ser compatíveis com os fins. Portanto, toda as ações humanas tem que ser amistosas, compassivas e não agressivas. Não causemos nenhum dano. Com relação a isso, não façamos concessões dizendo "mas" ou "se". Assumamos um compromisso. A não-violência de Mahavira é o amor incondicional por todos os seres.


Sendo assim, a não violência é o princípio mais importante dos jainistas. Todos os outros princípios derivam dele. A não-violência está inserida do primeiro até o último. Porque toda a vida é sagrada não podemos violar ou tirar vantagem das formas de vida  que são mais fracas que nós. Ahimsa é muito mais do que "Viva e deixe viver"; é "Viva e ame".



Sanyama (Simplicidade e Moderação)

O segundo princípio é sanyama que significa simplicidade, autocontrole, moderação e frugalidade.


Sentir-se satisfeito com pouco é sanyama. A ideia de que tudo o que temos, ou por mais que tenhamos, nunca é suficiente é uma fonte de angústia. Os jainistas são levados a guiar-se, não, pelo"mais e mais", porém pelo "isto é suficiente".


Para os jainistas não há nada faltando no mundo. Há abundância na natureza. Só quando queremos possuir, controlar, dominar, criamos escassez. Porque não temos tudo, queremos sempre mais. Esta possessividade é a fonte de escassez. No momento em que estamos satisfeitos e não queremos controlar e possuir temos abundância. Paradoxalmente, esta abundância, de acordo com os jainistas, só está disponível para aqueles que aprendem a viver dentro dos limites de suas necessidades.


Tapas (a Prática Espiritual de Purificação, Austeridade, Sacrifício e Jejum)

O princípio de tapas (literalmente "calor" ou de auto-purificação é uma das contribuições mais significativas da religião jaina. Assim como os seres humanos purificam seu corpo físico, também, precisam purificar sua alma. A mente fica poluída com pensamentos nocivos. A consciência se torna contaminada pelo ego, ganância, orgulho, raiva, medo. As almas sofrem por causa dos desejos, apegos e angústias. Mahavira, então, propôs formas de purificarmos a mente, a alma e a consciência; a isso chamou de "tapas".

O jejum, a meditação, a moderação, a peregrinação e o serviço ao próximo estão incluídos na categoria de tapas. É uma espécie de exercício da alma para que o mundo interior se mantenha saudável e puro.


Há quatro práticas a que o jainista aspira a fim de alcançar a libertação interior. A primeira é satya (verdade), que significa compreender e perceber a verdadeira natureza da existência e a verdadeira natureza de si mesmo. Significa aceitar a realidade como ela é - sendo fiel a essa realidade, vendo as coisas como são, sem julgá-las boas ou ruins. Significa "Não mentir", em seu sentido mais profundo: não tendo ilusões sobre si mesmo. Enfrente a verdade sem medo. As coisas são como são. Um pessoa veraz vai além das construções mentais e percebe a existência tal qual é.


Viver na verdade significa que devemos evitar manipular as pessoas ou a natureza, porque não há uma verdade única que todas as mentes possam apreender ou a língua possa expressar. Ser verdadeiro envolve ser humilde e aberto à novas descobertas e, ainda, aceitar que não existe nenhuma descoberta final, ou definitiva. A verdade é o que é: devemos aceitar o que é como é, falar dele como ele é e vivê-lo como ele é. Qualquer indivíduo ou grupo que reivindica saber toda a verdade está, por definição, enredado na falsidade. 
Finalizando: a existência é um grande mistério.

A segunda é asteya (não roubar), que significa abster-se de adquirir bens ou serviços além das necessidades essenciais. É difícil saber o que são as necessidades essenciais de cada um, por isso a religião jaina pede que avaliemos, analisemos e questionemos, diariamente, o que são nossas verdadeiras necessidades e o que é ambição. A distinção entre necessidade e ganância pode ser camuflada, portanto, o exame de nossas necessidades deve ser realizado com honestidade. O princípio de asteya inclui "não roubar" uma série de coisas. O entendimento jainista deste preceito vai mais longe do que qualquer definição legal. Se tomamos da natureza mais do que as nossas necessidades essenciais requerem, estamos roubando a natureza. Por exemplo, devastar uma floresta inteira seria visto como uma violação dos direitos da natureza e como roubo. Da mesma forma, uma sociedade em que uns possuem excesso de alimentos, roupa, habitação, e outros não, significa que uns privam outros desses requisitos essenciais e isso é roubo. Se estamos usando os recursos finitos a uma velocidade maior do que podem ser repostos, então, estamos roubando as futuras gerações. Os jainistas dão e depois recebem. Receber antes de dar é roubo.


A terceira é bramacarya. Este princípio tem sido intimamente associado com a conduta sexual adequada: bramacarya é o amor sem luxúria. Para os monges bramacarya significa abstinência total e para o leigos significa fidelidade no casamento. Quaisquer pensamentos, palavras ou atos que aviltam, rebaixam ou abusam do corpo são contra o princípio de bramacarya. O corpo é o templo do ser puro, portanto, nenhuma atividade  deve ser realizada que profane esse templo.


A quarta é aparigraha (não-possessividade) que significa a não acumulação de bens materiais. Se ninguém reter ou acumular bens, outros não ficarão privados deles. Aparigraha significa partilhar e viver sem ostentação, sem exibir sua riqueza. O vestuário, a alimentação, os móveis da casa devem ser simples, elegantes, mas mínimos. "Simples os  meios, ricos os fins" é a prática jaina. Quando gastamos muito tempo cuidando de nossas posses não há tempo para cuidarmos de nossa alma.


Aparigraha significa não adquirir o que não é necessário, reconhecendo que tudo o  que granjeamos se unirá a nós com força, nos aprisionando. Livre-se das aquisições que não são essenciais e sinta-se liberto. Para os jainistas é um imperativo moral viver simplesmente para que outros possam, simplesmente, viver.


Há cerca de 5 milhões de jainistas, a maioria no noroeste da Índia. Fora da Índia, jainistas são encontrados na África Oriental, Grã-Bretanha e EUA. Quase todos  eles são de origem indiana. Os jainistas não convertem os outros à sua religião. Eles acreditam que não há uma única verdade, há muitas verdades. Este sistema de múltiplas verdades é conhecido como "Anekantavada" que significa, simplesmente, não há, apenas, uma conclusão, uma realidade única, um deus. Nem monismo, nem dualismo, mas o pluralismo é o cerne da filosofia jaina.


Alguns jainistas são adoradores de imagens. Estes construíram templos gigantescos de rara beleza e arquitetura exótica. Templos como o de Ranakpur - Mt. Abu, no Rajastão, são exemplos de realizações artísticas e esculturais. Há outros jainistas que não seguem o caminho da adoração de imagens. Para eles, a construção de templos e rituais de adoração à divindades esculpidas é demasiado mundano. Eles são os minimalistas da tradição jaina e preferem o caminho da meditação.




Templo de Ranakpur


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